- Teatro Português – séc. XVI – Período do Humanismo
- Gil Vicente (1465 – 1536) – Pai do Teatro Português
(Organizava festejos da corte, além de ser ourives)
- Obra organizada e publicada por seu filho 5 anos após sua morte.
- Estreia em 1502: Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação
- Protegido da Rainha Maria de Castela
- Produziu desde peças simples e moralistas a composições sofisticadas – teatro clássico.
- Trabalhou com três vertentes:
1a vertente: Peças de moralidade e de devoção (temas medievais) – moral religiosa
- estruturas simples
- geralmente 1 ato
- versos em redondilhos maiores
- personagens pastores ou alegóricos
- exemplificação da realidade espiritual
Destacam-se nessa vertente:
- Auto da Visitação (1502)
- Trilogia das barcas: Auto da Barca do Inferno (1514)
Auto da Barca do Purgatório (1518)
Auto da Barca da Glória (1519)
- Auto da Lusitânia (1532)
2a vertente: Proliferação das Farsas (similares a comédias de costumes)
“ridendo castigat mores”
(rindo, castigam-se os costumes)
- ataque a valores (hipocrisia) de instituições como Igreja, família e casamento
- materialismo, ganância e corrupção
- Farsas – estrutura formal dos autos
Destacam-se nessa vertente:
- Quem tem farelos (1505)
- O velho da horta (1512)
- A farsa de Inês Pereira (1523)
3a vertente: Comédias de tom clássico
- requinte formal
- assuntos menos polêmicos
Destacam-se nessa vertente:
- Nau de amores (1527)
- Floresta de enganos (1536)
Farsa de Inês Pereira – a obra:
Apresentação da obra segundo Gil Vicente:
“A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderos rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, na era do Senhor 1523. O seu argumento é que, porquanto duvidavam certos homens de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: é um exemplo comum que dizem:
´Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube.’
E sobre esse motivo se fez esta farsa.”
- Essa obra é considerada o mais complexo trabalho do teatrólogo português, sendo didaticamente dividida em 5 partes:
- 1a parte: mostra-se a rotina (plano geral)
- 2a parte: ilustra-se a situação social da mulher (mãe de Inês, Lianor e Inês)
- 3a parte: comércio casamenteiro (judeus e Brás da Mata)
- 4a parte: a realidade do casamento
- 5a parte: nova Inês (experiente) tira proveito da situação
- Personagens (personagens-tipo):
- Inês: personagem com certa densidade psicológica (desejo de fugir à realidade doméstica)
- Mãe de Inês: por meio dela, revelam-se os hábitos acomodados de pessoas com poucos privilégios sociais
- Lianor Vaz: alcoviteira (por meio dela, criticam-se certas esferas do clero libertino)
- Pero Marques: parvo, ingênuo, filho de camponês rico (bom partido?)
- Latão e Vidal: judeus casamenteiros (por meio deles, criticam-se os interesses que envolvem os contratos matrimoniais)
- Brás da Mata: escudeiro pilantra e probetão – 1o marido (morre na África)
- Fernando: moço do escudeiro: empregado de Brás da Mata (por meio dele, apresenta-se a hipocrisia do patrão)
- Falso ermitão
- Luzia
Quanto à forma, essa farsa é composta majoritariamente de redondilhos e rimas que se encadeiam na troca das falas das personagens, contribuindo para a musicalidade do texto e para seu efeito cômico. Uso ostensivo de ditos populares e expressões que reafirmam o mote da peça. Trechos em castelhano – cantigas populares.
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Início:
Inês é filha de uma mulher de baixa sorte. Finge que está lavrando em casa. Entra cantando essa cantiga:
“Quem, vendo-vos, sofre e morre, que fará quando não vos vir?”
Inês: - Renego deste lavrar / e do primeiro que o usou! / Ao diabo que o eu dou / que tão mau é d’aturar! / Ó Jesu! Que enfadamento, / e que raiva e que tormento, / que cegueira, e que canseira! / Eu hei de buscar maneira / d’algum outro aviamento?
(...)
E quando me dão algum dia / licença como a bugia, / que possa estar à janela, / é já mais que a Madalena / quando achou a aleluia.
(...)
Praza a Deus que algum quebranto / me tire do cativeiro.
Mãe: - Olhade lá o meu pesar... / Como queres tu casar / com fama de preguiçosa?
Inês está ansiosa por casar-se, mas a mãe assenta-se na sabedoria popular:
“Ante a Páscoa vem os Ramos” / Não te apresses tu, Inês: “maior é o ano que o mês” / Virão maridos aos pares / e filhos de três em três.
Chega Lianor Vaz, comenta que um clérigo quis fazê-la pecar (prometendo sua absolvição para pecado que estava por cometer)
Lianor: - Quando viu revolta a voda, / foi e esfarrapou-me toda.
Mãe: - Assim me fez dessa guisa / outro, no tempo da poda.
Lianor traz notícias a mãe de Inês:
Em nome do anjo bento, / eu vos trago um casamento. / Filha, não sei se vos praz.
Inês: - Porém não hei de casar / senão com homem avisado (esperto), / ainda que pobre e pelado.
Lianor: - Eu vos trago um bom marido (...) / diz que em camisa vos quer.
Entrega a carta de Pero Marques.
Inês não gosta...
A mãe aconselha: “Mata o cavalo de sela, e bom é o asno que me leva.”
Lianor: “mais quero eu quem me adore / que quem faça com que chore.”
Inês, ainda que sem pretensão alguma, pede para que venha Pero Marques – filho de lavrador rico, tem jeito caipira e desastrado.
Pero: - (...) Eu vos escrevi de lá / Uma cartinha senhora... / Assi que... e de maneira...
Mãe: - Tomai aquela cadeira.
Pero: - E que val aqui uma destas?
Inês (à parte): - Ó Jesu! Que Jão das Bestas! / Olhai aquela canseira!
Pero senta-se de costas para elas: - Eu cuido que não estou bem...
Mãe: - Como vos chamam, amigo?
Pero: - Eu Pero Marques me digo / como meu pai, que Deus tem, / Faleceu, perdoe-lhe Deus! / que fora bem escusado, / e ficamos dois heréus / Porém meu é o mor gado.
Pero Marques traz peras para Inês, contudo não as encontra. Tira do chapéu algumas tranqueiras.
A mãe de Inês deixa-os a sós.
Pero: - Vossa mãe, foi-se? Ora bem... / Sós nos deixou ela assi? / Cant’en quero-me ir daqui, / Não diga algum demo alguém...
Inês (à parte) : - Quão desviado este está? / Todos andam por caçar / Suas damas sem casar, / E este... tomade-o lá!
Pero Marques diz que enviará Lianor para saber a resposta de seu pedido de casamento, porém Inês já lhe adianta que ela não desejará ele como esposo “Ide casar a Cascais”. Ainda assim, Pero coloca-se a disposição dela caso ela mude de ideia.
Pero (à parte): - Estas vos são elas a vós! / Anda homem a gastar calçado, / e quando cuida que é avisado, / escarnefucham de vós!
Vai-se Pero.
Inês: - Pessoa conheco eu / que levara outro caminho... / Casai lá com um vilãozinho, / mais covarde que um judeu! / Se fora outro homem agora, / e me topara a tal hora, / estando assi às escuras, / falara-me mil doçuras, / ainda que mais não fora...
“Que seja um homem mal feito, / feo, pobre, sem feição, / como tiver discrição, / não lhe quero mais proveito. / E saiba tanger viola, / e coma eu pão e cebola. / Siquer ua cantiguinha! / Discreto, feito em farinha, / porque isto me degola.
Inês havia conversado com Latão e Vidal, dois judeus casamenteiros que vão visitá-la.
Ambos chegam valorizando o esforço que fizeram para buscar um pretendente.
“Falo-calo / Calo-falo”
A mãe desaponta-se com a notícia: - Que siso, Inês, que siso / tens debaixo desses véus...
Inês: - Diz o exemplo da velha: ‘O que não haveis de comer / deixai-o a outrem mexer.’
Inês para Vidal: - Enfim, que novas trazeis?
Vidal: - O marido que quereis / de viola e dessa sorte, / não no há senão na corte / que cá não achareis. / (...) Falamos a Badajoz, / músico, discreto, solteiro, / este fora verdadeiro / mas soltou-se-nos da noz.
Marcam-lhe um encontro com o escudeiro Brás da Mata, que vem acompanhado de um “moço”.
“Olha cá, Fernando, eu vou / ver a com quem hei de casar. / Avisa-te que hás de estar / sem barrete onde eu estou (...) / E se me vires mentir, / gabando-me de privado, / está tu dissimulado, / ou sai-te lá fora a rir.”
Moço: - Porém, senhor, digo eu / que mal calçado é o meu / pera estas vistas assim.
Escudeiro: - Que farei se o sapateiro / não tem solas nem tem peles?
Rubrica: Chega o escudeiro onde está Inês Pereira, e alevantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro:
- Antes que mais diga agora, Deus vos salve, fresca rosa, / E vos dê por minha esposa, / Por mulher e por senhora; / Que bem vejo Nesse ar, nesse despejo (nessa graça), / Mui graciosa donzela, / Que vós sois, minha alma, aquela / Que eu busco e que desejo. / Obrou bem a Natureza / Em vos dar tal condição / Que amais a discrição / Muito mais que a riqueza. / Bem parece / Que a discrição merece / Gozar vossa fermosura, / Que é tal que, de ventura, / Outra tal não se acontece. / Senhora, eu me contento / Receber vos como estais: (...)
Latão: - Como fala!
Vidal: - E ela como se cala! Tem atento o ouvido... Este há-de ser seu marido (...)
O escudeiro pede a viola ao moço, que reclama das más condições a que é submetido.
Judeus cantam.
Mãe: - Quero rir com toda a mágoa / Destes teus casamenteiros! / Nunca vi Judeus ferreiros / Aturar tão bem a frágoa. / Não te é milhor mal por mal, / Inês, um bom oficial, / Que te ganhe nessa praça, / Que é um escravo de graça, / E mais casas com teu igual?
Latão: - Senhora, perdei cuidado: / O que há-de ser há-de ser; / E ninguém pode tolher / O que está determinado.
Vidal: - Assi diz Rabi Zarão.
O escudeiro Brás da Mata então pede a mão de Inês, que a ele consente de bom grado.
Brás da Mata: - Per palavras de presente / te recebo desd´agora.
Os judeus abençoam a união e cobram seus “ducados”.
A mãe fala em fazer uma festa.
Escudeiro: - Oh! quem me fora solteiro!
Inês: - Já vós vos arrependeis?
Escudeiro: - Ó esposa, não faleis, / Que casar é cativeiro. (Revelação)
A mãe cede a própria casa aos noivos.
Assim que estão a sós, Brás da Mata muda o tratamento e começa proibindo Inês de cantar.
Escudeiro: - Será bem que vos caleis. / E mais, sereis avisada / Que não me respondais nada, / Em que ponha fogo a tudo, / Porque o homem sesudo / Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar / Com homem nem mulher que seja; / Nem somente ir à igreja / Não vos quero eu leixar / Já vos preguei as janelas, / Por que não vos ponhais nelas. / Estareis aqui encerrada / Nesta casa, tão fechada / Como freira d'Oudivelas.
Inês: - Que pecado foi o meu? / Por que me dais tal prisão?
Escudeiro: (...) - Vós não haveis de mandar / Em casa somente um pêlo. / Se eu disser: - isto é novelo - / Havei-lo de confirmar / E mais quando eu vier / De fora, haveis de tremer; / E cousa que vós digais / Não vos há-de valer mais / Que aquilo que eu quiser.
Uma vez casado, Brás da Mata almeja fazer-se cavaleiro, partindo em expedição militar para a África. Orienta Fernando para que vigie Inês e não a deixe sair de casa.
Quando o “moço” reclama de não possuir dinheiro para se sustentar na ausência do patrão, este lhe diz para comer o que encontrar, tubérculos, galinhas, frutas.
Inês, no “claustro”, canta e medita:
“Quem bem tem e mal escolhe / Por mal que lhe venha não s'anoje.”
Renego da discrição / Comendo ó demo o aviso, / Que sempre cuidei que nisso / Estava a boa condição. / Cuidei que fossem cavaleiros / Fidalgos e escudeiros, / Não cheios de desvarios, / E em suas casas macios, / E na guerra lastimeiros.
Vede que cavalarias, / Vede que já mouros mata / Quem sua mulher maltrata / Sem lhe dar de paz um dia! / Sempre eu ouvi dizer / Que o homem que isto fizer / Nunca mata drago em vale / Nem mouro que chamem Ale: / E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido / Que se solteira me vejo, / Assi como eu desejo, / Que eu saiba escolher marido, / À boa fé, sem mau engano, / Pacífico todo o ano, / E que ande a meu mandar / Havia m'eu de vingar / Deste mal e deste dano!
Inês recebe um carta do irmão, que lhe informa da morte do marido em Arzila.
«E não vos maravilheis / De cousa que o mundo faça, / Que sempre nos embaraça / Com cousas. / Sabei que indo Vosso marido fugindo / Da batalha pera a vila, / A meia légua de Arzila, / O matou um mouro pastor.»
Moço: - Ó meu amo e meu senhor!
Inês: - Dai-me vós cá essa chave / E i buscar vossa vida.
Moço: - Ó que triste despedida!
Inês: - Mas que nova tão suave! / Desatado é o nó. / Se eu por ele ponho dó, / O Diabo me arrebente! / Pera mim era valente, / E matou-o um mouro só!
Lianor Vaz vem visitar Inês, que finge chorar. Lianor aconselha Inês a casar-se com Pero Marques, o antigo pretendente.
Enquanto Lianor vai buscá-lo, Inês, sozinha, diz:
Andar! Pêro Marques seja. / Quero tomar por esposo / Quem se tenha por ditoso / De cada vez que me veja. / Por usar de siso mero, / Asno que me leve quero, / E não cavalo folão. / Antes lebre que leão, / Antes lavrador que Nero.
Lianor realiza o casamento dos dois.
Mal se casa, Inês informa ao marido que deseja sair só, e o marido consente, dando-lhe toda a liberdade
Logo que vai saindo, Inês depara-se com um Ermitão a pedir esmolas. Embora ela não o reconheça, este, quando jovem, apaixonara-se por ela.
Señores, por caridad / Dad limosna al dolorido / Ermitaño de Cupido / Para siempre en soledad. / Pues su siervo soy nacido. / Por ejemplo, / Me meti en su santo templo / Ermitaño en pobre ermita, / Fabricada de infinita / Tristeza en que contemplo, (...)P
Inês diz ao marido que vai dar esmolas ao homem e deseja fazê-lo só. Ao que este não contesta.
Ao aproximar-se do ermitão, o homem lhe revela a identidade, o que muito apraz a ela. Marcam de encontrar-se na ermida.
Inês: - I-vos meu santo. / Que eu irei um dia destes, / Muito cedo, muito prestes.
Voltando ao marido, refere-se ao ermitão como “um anjinho de Deus”.
Sugere ao marido que visitem a ermida os dois em romaria, ao que o marido consente.
Põem-se a caminho.
Ao chegar a um rio, Inês manda que Pero fique descalço e a coloque sobre os ombros para fazerem a travessia.
Ao ver duas lousas belas (lâminas de pedras), Inês pede que o marido as carregue, uma sob cada braço.
Ensina a ele um verso, para que repita como refrão enquanto ela canta:
«Marido cuco me levades / E mais duas lousas.»
Pero: «Pois assi se fazem as cousas.»
Inês: «Bem sabedes vós, marido, / Quanto vos amo. / Sempre fostes percebido (preparado) / Pera gamo. / Carregado ides, noss'amo, / Com duas lousas.»
Pero: «Pois assi se fazem as cousas»
Inês: «Bem sabedes vós, marido, / Quanto vos quero. / Sempre fostes percebido / Pera cervo. / Agora vos tomou o demo / Com duas lousas.»
Pero: «Pois assi se fazem as cousas.»
E assi se vão, e se acaba o dito Auto.
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Observe a alusão a quatro animais:
Asno – a situação de Pero Marques ao carregar a esposa nas costas e mais duas lousas sob cada braço.
Cuco – ave que coloca seus ovos em ninhos de outros pássaros, símbolo de marido traído.
Cervo e Gamo, mamíferos semelhantes que possuem chifres, também simbolizam o homem traído.
- Prof. Leonardo Cassanho Forster
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